Memória Descritiva 2013
Dimensões 120x180cm e 160x106cm
impressão jacto de tinta
Descriptive Memory 2013
Dimensions 120x180cm e 160x106cm
Ink Jet Print
Appleton Square, Lisboa 2015
vistas de instalação
Appleton Square, Lisbon 2015
installation views
The
Soliloquy of the Broom
Sou atraída aqui pelo que me assusta em mim. – Nunca vi nada
igual no mundo. Mas reconheço esta cidade no mais fundo de meu sonho. O mais
fundo de meu sonho é uma lucidez.
Clarice
Lispector, “Brasília”
O trabalho de Catarina Botelho tem
vindo a posicionar-se em relação ao que se designou já como a “alienação da
arte”[1].
Esta designação parte da constatação de um facto histórico: o da separação, na
modernidade, entre arte e verdade, e o consequente isolamento da primeira em
relação à vida comum e às suas preocupações práticas e teóricas. A emancipação
da criação artística face aos restantes âmbitos da experiência humana teve como
preço a sua retirada dos domínios tradicionalmente constitutivos do que
entendemos por uma vida em comunidade (nomeadamente, da religião, da política, da
moral). Isto significa que a modernidade inaugurou um momento inédito, no qual,
para o dizer nos termos clássicos, o belo se separou do bom e do verdadeiro.
De acordo com a mesma leitura[2],
esta situação tem sido vivida de dois modos distintos: quer como a experiência
de uma perda, na qual a arte se reconhece privada do poder de dizer a verdade —
também acerca dos nossos compromissos existenciais —, entregando-se, portanto, ao
luto dessa possibilidade perdida; quer, pelo contrário, como a experiência da
descoberta de que a sua vocação para a autonomia é algo ao qual deve certamente
responder, mas ao qual não pode soçobrar. Se a primeira modalidade é a do luto (pela
‘morte da arte’), a segunda corresponde à possibilidade de evitar o seu
(segundo) fim através da descoberta da verdade do seu destino: uma reflexão
crítica a seu próprio respeito. É o modo em que a arte remete para a verdade da
sua vocação instável, agindo para além (ou a despeito) da sua exclusão da vida
comum.
É neste segundo modo que as obras de Catarina
Botelho se têm vindo a posicionar. As séries Entre nós e as palavras (Marrocos 2011), O tempo e o modo (Turquia 2011) e Zona de ordenação aberta (Espanha 2014) indicavam já um interesse
pela experiência partilhada de espaços concretos, no qual a atenção às formas
arquitectónicas se assumia como uma reflexão sobre o limiar entre exterior e
interior, ou público e privado, e onde a escala das fotografias expunha o
espectador a uma relação quase física com as atmosferas fotografadas — a uma
interrogação, poder-se-ia dizer, a respeito da indeterminação funcional dos
espaços fotografados e, portanto, a respeito da modalidade temporal que
suscitam. Pensar a experiência do tempo — do tempo de uma troca, de um banho, da
recreação no subúrbio de uma cidade — era ali a proposta, questionando-se a
tendencial compartimentação rígida das diferentes partes que compõem a nossa vida.
Tal reflexão propunha-se partir da experiência do grande ausente destas
fotografias: o corpo humano (do qual, porém, nenhuma cessa de falar).
Estas séries recordavam um trecho de Walter Benjamin
sobre as entradas das casas de camponeses das pequenas aldeias do sul de
Espanha e os objectos, todos eles “mais ou menos preciosos”, que,
invariavelmente, aí se oferecem: três ou quatro cadeiras, um chapéu de palha, a
rede de pesca, a panela de cobre, o remo ou a ânfora de barro[3].
Benjamin compara estes vestíbulos com “as nossas casas bem mobiladas”, onde
“não há lugar para o que é precioso, porque não há espaço para os seus
serviços”, quer dizer, para o acolhimento do outro que converte o espaço
privado num espaço comum. Naquelas séries fotográficas, Catarina Botelho
procurou espaços e objectos ‘preciosos’, evidenciando que o tempo ali é sem
preço, quer dizer, é aquilo em que consiste propriamente o nosso valor enquanto
humanos, ao qual Kant chamou dignidade e que é outro nome para a liberdade. Precioso
é o tempo para que estes espaços remetem, um tempo livre da lógica instrumental
e das regras da produção, um tempo artesanal, manual, onde o físico se torna espiritual
(encontro, diálogo, jogo), e o espaço pode ser vivido no modo da solidão
partilhada que constitui a nossa espécie.
Na série que agora se expõe, e que resulta de uma
residência artística da fotógrafa na cidade de São Paulo, a mesma matriz de
preocupações é perseguida, mas desta feita em “espaços nos quais é difícil
deixar rasto”[4].
É nestes termos que, num outro texto onde retoma a caracterização das salas
burguesas atulhadas com as marcas dos seus habitantes, e onde a impressão de
quem chega é a de que “Este não é lugar para ti!”, Benjamin se refere aos
espaços que delas deliberadamente se demarcaram, os espaços da arquitectura
modernista. Estes ergueram-se rejeitando “a imagem do homem tradicional, (...) adornada
com todas as oferendas do passado, para se voltarem para o homem contemporâneo,
despojado e gritando como um recém-nascido nas fraldas sujas deste tempo”[5],
na expectativa de “começar tudo de novo, voltar ao princípio, saber viver com
pouco, construir algo com esse pouco”[6].
Um século depois, Catarina Botelho interroga os resultados desta expectativa em
espaços pertencentes a edifícios públicos do período modernista da arquitectura
brasileira, que deu também ela corpo ao anseio da criação de uma nova
sociedade. Baseado em convicções políticas e preocupações sociais reflectidas no
despojamento ou sobriedade formais (a “pobreza” de que fala Benjamin), esse
anseio confronta-nos hoje com a questão de saber se chegou a hora de fazer o
seu luto ou a sua crítica. É essa a pergunta que estas fotografias nos colocam,
dando continuidade ao interesse da fotógrafa por espaços sem utilidade aparente
(neste caso, vastos átrios, vazios de mobiliário e sem paredes), que acolhem
actividades alheias aos imperativos da produtividade e da funcionalidade e cujo
valor não é imediatamente reconhecido (como a actividade da limpeza de manutenção
destes edifícios).
A interrogação nasceu da experiência de desconforto
suscitada por estes espaços, pela sua escala, pela frieza dos materiais e pela
ausência que parecem alojar. Experiência que é análoga à impressão causada pela
cidade de Brasília em Clarice Lispector: “Brasília é uma cidade abstrata. E
não há como concretizá-la. É uma cidade redonda e sem esquinas. Também
não tem botequim para a gente tomar um cafezinho. É verdade juro que não vi
esquinas, em Brasília não existe cotidiano.”[7]
Como habitar um espaço que quer “começar tudo de novo”, despojado de “todas as
oferendas do passado”? E como interpretar, hoje, as promessas modernistas da
constituição de lugares públicos onde tudo pode recomeçar, de espaços
verdadeiramente comuns, absolutamente destituídos de uma função instrumental,
construídos para abrigar e suscitar aquilo que é sem preço e que parecem,
porém, esperar ainda pelos hóspedes que os irão finalmente habitar, finalmente
livres e disponíveis para o tempo da dignidade, da sobriedade onde “é difícil
deixar vestígios”? (Lispector: “Brasília ainda não tem o homem de Brasília” e “Brasília é um futuro que aconteceu no passado”.)
Transformados em lugares de passagem (sem esquinas
nem cadeiras, não pode haver ali permanência,
paragem, suspensão da actividade), a única habitação que, efectivamente, se
verifica acontece durante o tempo da sua limpeza, momento em que o(s) corpo(s) que
limpa(m) estabelece(m) uma relação física com o espaço através de utensílios
que o percorrem, diariamente tocando, lavando, encerando. Foi neste tempo — um
tempo inútil, do trabalho improdutivo, repetitivo, de apagar vestígios — que
Catarina Botelho se concentrou para dar forma à sua interrogação. Ela é
encarnada pelos utensílios de limpeza, que se nos oferecem como a vassoura da
fotografia de Talbot intitulada A porta
aberta. Também aqui, nas fotografias dos átrios da Assembleia do Estado de
São Paulo, do Museu de Escultura Brasileiro, da Faculdade de Arquitectura e
Urbanismo ou do Edifício da Bienal de São Paulo, “em vez de simplesmente vir ou
estar ali”, a realidade presente “é chamada e mantida, erguida, reivindicada”,
“como se as coisas exibissem o seu lado humilde, [e] ao mesmo tempo, uma
simplicidade afectada, produzindo este efeito (...) de uma mendicidade da
presença, de uma presença mendigada”[8].
Também agora esta enceradora desligada, o rondo encostado à coluna, as pás
pousadas ou a esfregona imobilizada sobre as franjas torcidas indicam a pausa
em que o tempo se recria e se interroga, num acordo com o vazio do espaço, os
seus materiais assépticos, as linhas perfeitas, a quase ausência de cor. Um
tempo que suspende o quotidiano da canção, no qual todo o dia se faz tudo
sempre igual. Que interrompe a mecânica dos gestos ao conceder presença ao que,
afinal, os mecaniza — dando visibilidade, dignidade, ao instrumento, por instantes
libertado da sua função. Poderia ser de outro modo se “Brasília ainda não tem o
homem de Brasília”? Quer dizer, a que figura humana poderiam estas fotografias
recorrer, sem comprometer a autonomia que reivindicam, sem se sujeitarem à
função de denúncia ou de ilustração de uma realidade que “está simplesmente
ali”? Dissemo-lo já, elas assumem a posição crítica (e auto-crítica), agindo
sobre a vida comum sem com ela se confundirem.
Também por isso, esta enceradora ou
este balde voltado de costas para nós falam de um modo diferente da escavadora
de Pasolini, a escavadora que chora pela humanidade. O pranto é aqui
substituído por um solilóquio, que ressoa nas paredes de betão ou de mármore, e
medita sobriamente sobre esse “futuro que aconteceu no passado”. Uma meditação
sobre o tempo, que é própria, como se sabe, das naturezas mortas. Conta-se que
a mãe de Talbot terá chamado à primeira versão da fotografia da vassoura “The
Soliloquy of the Broom”. Aqui, o solilóquio não faz nenhum luto por um tempo perdido;
interroga-se, antes — sem lágrimas, na lucidez que é o fundo mais fundo de
qualquer sonho —, porque razão “a luz/ do futuro não pára um só instante/ de
nos ferir”[9].
Maria
João Mayer Branco
Lisboa,
Abril 2015
[1] J. M. Bernstein, The
Fate of Art. Aesthetic Alienation From Kant to Derrida and Adorno, The
Pennsylvania State University, 1992.
[3] Walter
Benjamin, “Espaço para o que é precioso” in Imagens
de pensamento, Assírio e Alvim, Lisboa, 2004, pp. 222-223 (edição e tradução
de João Barrento).
[4] Walter Benjamin, “Experiência e indigência” in O anjo da história, Assírio e Alvim,
Lisboa, 2010, p. 77 (edição
e tradução de João Barrento). Cf também
“Habitar sem deixar vestígios” in Imagens de
pensamento,
Assírio e Alvim, Lisboa, 2004, p. 247 (edição e tradução de João Barrento).
[8] Jean-Christophe Bailly, L’instant et son ombre, Éditions du seuil, Paris, 2008 (p. 65).